Foi de um discurso do dramaturgo Pierre-Augustin Caron de
Beaumarchais, em outubro de 1774, que surgiu o sentido moderno da palavra
cidadão -- que ganharia maior ressonância nos primeiros meses da revolução
francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Em sentido
etimológico, cidadania refere-se à condição dos que residem na cidade. Ao mesmo
tempo, diz da condição de um indivíduo como membro de um estado, como portador
de direitos e obrigações. A associação entre os dois significados deve-se a uma
transformação fundamental no mundo moderno: a formação dos estados
centralizados, impondo jurisdição uniforme sobre um território não limitado aos
burgos medievais.
Na Europa, até o
início dos tempos modernos, o reconhecimento de direitos civis e sua
consagração em documentos escritos (constituições) eram limitados aos burgos ou
cidades. A individualização desses direitos a rigor não existe até o surgimento
da teoria dos direitos naturais do indivíduo e do contrato social, bases
filosóficas do antigo liberalismo. Nesse sentido, os privilégios e imunidades
dos burgos medievais não diferem, quanto à forma, dos direitos e obrigações das
corporações e outros agrupamentos, decorrentes de sua posição ou função na
hierarquia social e na divisão social do trabalho. São direitos atribuídos a
uma entidade coletiva, e ao indivíduo apenas em decorrência de sua participação
em um desses "corpos" sociais.
O termo cidadão
tornou-se sinônimo de homem livre, portador de direitos e obrigações a título
individual, assegurados em lei. É na cidade que se formam as forças sociais
mais diretamente interessadas na individualização e na codificação desses
direitos: a burguesia e a moderna economia capitalista.
Ao ultrapassar os
estreitos limites do mundo medieval -- pela interligação de feiras e comunas,
pelo estabelecimento de rotas regulares de comércio, entre regiões da Europa e
entre os continentes --, a dinâmica da economia capitalista favorece a
imposição de uma jurisdição uniforme em determinados territórios, cuja extensão
e perfil derivam tanto da interdependência interna enquanto
"mercado", como dos fatores culturais, lingüísticos, políticos e
militares que favorecem a unificação.
Em seus
primórdios, a constituição do estado moderno e da economia comercial capitalista
é uma grande força libertária. Em primeiro lugar, pela dilatação de horizontes,
pela emancipação dos indivíduos ante o localismo, ante as convenções medievais
que impediam ou dificultavam a escolha de uma ocupação diferente da transmitida
como herança familiar; libertária, também, ante as tradições e crenças que se
diluíam com a maior mobilidade geográfica e social; mas libertária, sobretudo,
pela imposição de uma jurisdição uniforme, que superava o arbítrio dos senhores
feudais e reconhecia a todos os mesmos direitos e obrigações, independentemente
de seu trabalho ou condição socioeconômica.
Além do sentido
sociológico, a cidadania tem um sentido político, que expressa a igualdade
perante a lei, conquistada pelas grandes revoluções (inglesa, francesa e
americana), e posteriormente reconhecida no mundo inteiro.
Nessa
perspectiva, a passagem do âmbito limitado - dos burgos - ao significado amplo
da cidadania nacional é a própria história da formação e unificação dos estados
modernos, capazes de exercer efetivo controle sobre seus respectivos
territórios e de garantir os mesmos direitos a todos os seus habitantes. É
fundamentalmente uma garantia negativa: contra as limitações convencionais ao
comportamento individual e contra o poder arbitrário, público ou privado.
Rumo à
universalização. A cidadania é originalmente um direito burguês. Contudo,
quando reivindicada como soma de direitos fundamentais do indivíduo, estes se
tornam neutros quanto a seus beneficiários presentes e potenciais.
Vista como processo
histórico gradual, a extensão da cidadania é (1) a transformação da estrutura
social pré-moderna no quadro da economia capitalista e do estado nacional
moderno e (2) o reconhecimento e a universalização de toda uma série de novos
direitos que, em parte, são indispensáveis ao funcionamento da economia
capitalista moderna e, em parte, são resultado concreto do conflito político
dentro de cada país. Portanto, trata-se de um conceito ao mesmo tempo jurídico,
sociológico e político: descreve a consagração formal de certos direitos, o
processo político de sua obtenção e a criação das condições socioeconômicas que
lhe dão efetividade.
Cidadania e
democracia. A cidadania tem dois aspectos: (1) o institucional, porque envolve
o reconhecimento explícito e a garantia de certos direitos fundamentais, embora
sua institucionalização nunca seja constante e irredutível; (2) e o processual,
porque as garantias civis e políticas, bem como o conteúdo substantivo, social
e econômico, não podem ser vistos como entidades fixas e definitivas, mas
apenas como um processo em constante reafirmação, com limiares abaixo dos quais
não há democracia. Democrático, no sentido liberal, é o país que, além das
garantias jurídicas e políticas fundamentais, institucionaliza amplamente a
participação política.
Direitos e
garantias individuais. A necessidade de certas prerrogativas que limitem o
poder político em suas relações com a pessoa humana são, muito provavelmente,
criação do cristianismo, que definiu o primeiro terreno interditado ao estado:
o espiritual.
No campo do
direito positivo, foi a revolução francesa que incorporou o sistema dos
direitos humanos ao direito constitucional moderno. A teoria do direito
constitucional dividiu, de início, os direitos humanos em naturais e civis,
considerando que a liberdade natural, mais ampla, evolui para o conceito de
liberdade civil, mais limitada, visto que seus limites coincidem com os da
liberdade dos outros homens.
A primeira
concretização da teoria jurídica dos direitos humanos foi o Bill of Rights, de
1689 -- a declaração de direitos inglesa. Só depois da independência dos
Estados Unidos, porém, as declarações de direitos, inseridas nas constituições
escritas, adquirem o perfil de relação de direitos oponíveis ao estado, e dos
quais os indivíduos são titulares diretos. Dada sua importância, o direito
constitucional clássico dividia as leis fundamentais em duas partes: uma
estabelecia os poderes e seu funcionamento; outra, os direitos e garantias
individuais.
No Brasil, é
clássica a definição dada por Rui Barbosa às garantias, desdobramento dos
direitos individuais: "Os direitos são aspectos, manifestações da
personalidade humana em sua existência subjetiva, ou nas suas situações de
relações com a sociedade, ou os indivíduos que a compõem. As garantias
constitucionais stricto sensu são as solenidades tutelares de que a lei
circunda alguns desses direitos contra os abusos do poder." É o caso do
direito à liberdade pessoal, cuja garantia é o recurso do habeas corpus.
Direitos sociais.
Na antiguidade, considerava-se que o trabalho manual não era compatível com a
inteligência crítica e especulativa, ideal do estado. Daí o reconhecimento da
escravidão, que restringia consideravelmente os ideais teóricos da democracia
direta. A revolução social do cristianismo baseou-se principalmente na
dignificação do trabalho manual. Por conseguinte, durante a Idade Média, o
trabalho era considerado um dever social e mesmo religioso do indivíduo.
Com o declínio
das corporações de ofício, que controlavam o trabalho medieval, e o surgimento
das oficinas de trabalho, de características diferentes, entre as quais a
relação salarial entre operário e patrão, estão dadas as condições propícias ao
capitalismo mercantilista da época do Renascimento e da Reforma.
Mais tarde, a
burguesia, que dominara a revolução francesa, viu-se diante dos problemas
sociais decorrentes da revolução industrial. Assim, tornou-se indispensável a
intervenção do estado entre as partes desiguais em confronto no campo do
trabalho, para regular o mercado livre em que o trabalhador era cruelmente
explorado.
Atualmente não se
pode conceber a proteção jurídica dos direitos individuais sem o reconhecimento
e a proteção dos direitos sociais do homem, que são oponíveis não ao estado,
mas ao capital, e têm na ação do estado sua garantia.
Hoje existe um
grande movimento pelo reconhecimento, definição e garantia internacionais dos
direitos humanos. Em 10 de dezembro de 1948, a assembléia geral da Organização
das Nações Unidas (ONU) adotou em Paris a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que só terá força obrigatória quando for uma convenção firmada por
todos os países membros da ONU.
Os regimes de
governo são justos na medida em que as liberdades são defendidas, mesmo em
épocas de crise. Os princípios gerais de direito são sempre os mesmos: processo
legal, ausência de crueldade, respeito à dignidade humana. As formas de
execução desses princípios também não variam. Resumem-se em leis anteriores, em
garantias eficazes de defesa e, como sempre, acima de tudo, em justiça
independente e imparcial.
Suspensão das
garantias constitucionais. No Brasil, a instabilidade do poder político e as
lutas oligárquicas durante a primeira república fizeram do estado de sítio e da
intervenção federal os centros de convergência dos debates jurídicos e das
ações políticas. Também o Supremo Tribunal Federal defrontou-se freqüentemente
com o problema. No entanto os fatos mais de uma vez atropelaram o direito ao
longo da história do Brasil.